D. Afonso Henriques
e o nascimento de Portugal
Quando nos debruçamos sobre a história de Portugal logo
somos assaltados por um interessante paradoxo: como pôde um país tão pequeno em
extensão territorial realizar uma epopeia — navegações, descobrimentos,
conquistas, feitos missionários — de tão grande monta?
A
história do nascimento dessa nação traz um pouco de luz para a solução do
intrigante problema. Com efeito, Deus Nosso Senhor, tal como fez com o povo
eleito do Antigo Testamento, escolheu Portugal para intervir na História, a seu
modo preparando “um Império” por cujo meio seu nome seria “publicado
entre as nações mais estranhas”.
Antecedentes
Os
visigodos arianos, expulsos da França pela acção de Clóvis,(1) penetraram na
Península Ibérica, ali encontrando os suevos, povo pagão instalado naquelas terras.
O longo trabalho da Igreja, aliado à influência de povos já convertidos, vai
entretanto dobrando aos poucos a dura cerviz dos “bárbaros”. Por volta de 560,
conforme narra o historiador luso João Ameal, “o povo suevo se converte
à verdadeira religião, graças a São Martinho de Dume. Em Braga se celebra (em
561) um concílio para festejar a conversão. Cria-se o rito bracarense — e a
metrópole sueva torna-se, como então foi dito, a Roma das Espanhas”.(2)
Ainda algumas disputas com os arianos e, no III Concílio de Toledo em 589, os
monarcas e bispos hereges acabam por abjurar a heresia.
Entretanto,
agiganta-se outro inimigo da Cristandade nascente. O império maometano
assenhora-se do norte da África e fica à espreita da ocasião para invadir a
Europa divida. Esta ocasião não tarda. “Apesar dos benefícios
resultantes da unificação cristã e da obra moralizadora e organizadora dos
Concílios, apesar de uma cultura já brilhante, a sociedade visigoda não se
sustenta”,(3) corroída que está por poderosas toxinas (restos do partido
ariano, chefes locais e grupos disseminadores de insatisfação). Em 710, brigas
sucessórias entre os visigodos acabam por abrir as portas aos mouros, que
acorrem em grande número. Sua marcha só é tolhida por Carlos Martel, já em
território franco.
A
presença moura logo se consolida. Forma-se no território ibérico um “xadrez
movediço”, dadas as incessantes disputas entre os próprios muçulmanos,
as conquistas e derrotas dos visigodos, e a resignação dos chamados
mosárabes.(4)
Cerca
de cinco séculos vão se passar num convívio, ora pacífico, ora sangrento, entre
invasores e cristãos. Mas não sem que o desejo da reconquista impulsione os
verdadeiros cavaleiros. Afonso VI de Leão, no século XI, desponta como líder da
insurreição, disposto a responder à altura à insolência dos príncipes árabes.
A
Igreja, entretanto, encontra-se em crise. Mas a ação da Providência não tarda.
E os beneditinos de Cluny, com sua rede de mosteiros que vão se difundindo por
toda a França, tornam-se o centro da reforma.
É
a esse ramo beneditino que Afonso VI recorre, em um momento culminante na luta
contra os mouros. E o abade Hugo, que naquela ocasião governava Cluny, não o
decepciona. Intervindo junto a Filipe I da França, consegue reforços, pondo em
marcha um valoroso grupo de cavaleiros franceses.
Vitorioso,
D. Afonso VI retribui aos cavaleiros concedendo-lhes territórios e a mão de
suas filhas. Uma delas – Da. Tereza – desposa D. Henrique de Borgonha, que
recebe, além disso, o senhorio sobre uma região localizada entre os rios Minho
e Tejo, no extremo oeste da Península. Em 1097, D. Henrique usa já o expressivo
título de “Conde portucalense”.
Com
esses casamentos D. Afonso VI consegue descentralizar o poderio militar de seu
império, favorecendo a resistência a um inimigo que ataca inopinadamente em
todas as frentes. Tal descentralização ocasionará, mais à frente, o
desmembramento de seu império.
Morrendo
D. Afonso VI, D. Henrique vê a oportunidade de emancipação de seu Condado.
Vários factores levam à formação do que João Ameal chama de “uma nacionalidade
em potência”: “Todos os factores cujo esquemático panorama acaba de ser
enumerado — hipotéticas diferenciações geográficas, étnicas e linguísticas,
singularidade de um destino marcadamente oceânico, intenso comércio marítimo com
as populações nórdicas, superiores desígnios pontifícios para a arrumação da
Península, ascendente benéfico de Cluny, justificáveis ambições pessoais de D.
Henrique, antiga e persistente aspiração dos senhores de entre-Douro-e-Minho à
conquista da autonomia — se conjugam para apresentar aqui, nos inícios do séc.
XII, o que será justo chamar: uma nacionalidade em potência”.(5)
Dom Afonso Henriques
No
entanto, D. Henrique — cujo nome “é o primeiro a gravar-se nos anais da
conquista da independência portuguesa” — morre sem conseguir realizar
suas aspirações.
Seu
filho Afonso, sem embargo, vai se mostrando desde pequeno propenso a
realizá-las. E os melhores vultos da nobreza — entre os quais o mítico Gonçalo
Mendes, o Lidador — põem nele suas esperanças. Ainda muito
jovem, sai vencedor na Batalha de São Mamede, o que lhe assegura a soberania
sobre seus territórios frente às pretensões dos reinos vizinhos e de
facçõesinternas.
As
relações com o governo leonês deixam de ser vassalo-senhor. Mostrando seus
propósitos de emancipação, D. Afonso vai ao mesmo tempo consolidando a
estrutura de seus domínios. Favorece a estabilização do poder eclesiástico nas
mãos do arcebispo de Braga e trabalha em prol de boas relações com a Santa Sé.
O “Fundador dos Impérios”
Os
árabes agitam-se novamente, fazendo incursões e derrotando os portucalenses. D.
Afonso assina um acordo de paz com o imperador de toda a Hispania (Afonso VII
de Leão e Castela), assegurando a estabilidade em uma de suas frentes. Para
barrar o mouro invasor, intui que é preciso causar terror em seu meio.
Aproveitando-se de uma crise dinástica entre Almorávidas e Almôhadas, penetra
em território dominado por eles para dar batalha.
O
número dos inimigos, entretanto, começa a esmorecer a coragem dos
portucalenses. Assim narra o próprio D. Afonso: “Eu estava com meu
exército nas terras de Alentejo no Campo de Ourique para dar batalha a Ismael,
e outros quatro reis mouros, que tinham consigo infinitos milhares de homens; e
minha gente, temerosa de sua multidão, estava atribulada, e triste
sobremaneira, em tanto que publicamente diziam alguns seria temeridade acometer
tal jornada. E eu, enfadado do que ouvia, comecei a cuidar comigo o que faria”.(6)
No
meio dessa preocupação, D. Afonso entra em sua tenda, toma a Sagrada Escritura,
abre-a justamente na narrativa da vitória de Gedeão, e dirige em seguida uma
prece a Deus: “Mui bem sabeis Vós, Senhor Jesus Cristo, que por amor
vosso tomei sobre mim esta guerra contra os blasfemadores de vosso nome”. Cansado,
adormece e, em sonho, vê um ancião que vem até ele, prometendo-lhe a vitória.
Seu camareiro logo o desperta, apresentando o mesmo ancião que vira no sonho, o
qual lhe dirige a mesma promessa de vitória, acrescentando que Nosso Senhor
queria comunicar-lhe uma mensagem.
D.
Afonso obedece às ordens daquele homem de Deus, dirigindo-se ao local
determinado. “Vi de repente no próprio raio resplandecente o sinal da
Cruz, mais resplandecente que o Sol, e
Jesus
Cristo crucificado nela. Lancei-me por terra e, desfeito em lágrimas, comecei a
rogar pela consolação de meus vassalos, e disse sem nenhum temor: ‘A que fim me
apareceis, Senhor? Quereis por ventura acrescentar fé a quem tem tanta? Melhor
é por certo que vos vejam os inimigos, e creiam em vós, que eu, que desde a
fonte do Baptismo vos conheci por Deus verdadeiro, Filho da Virgem, e do Padre
Eterno, e assim vos conheço agora’. O Senhor, com um tom de voz suave, que meus
ouvidos indignos ouviram, me disse: ‘Não te apareci deste modo para acrescentar
tua fé, mas para fortalecer teu coração neste conflito, e fundar os princípios
de teu Reino sobre pedra firme. Confia, Afonso, porque não só vencerás esta
batalha, mas todas as outras, em que pelejares contra os inimigos da minha
Cruz. Acharás tua gente alegre, e esforçada para a peleja, e te pedirá que
entres na batalha com o título de Rei. Não ponhas dúvida; mas tudo quanto te
pedirem lhe concede facilmente. Eu sou o fundador, e destruidor dos Reinos, e
Impérios; e quero em ti, e teus descendentes, fundar para mim um Império, por
cujo meio seja meu nome publicado entre as nações mais estranhas’. ‘Por que
méritos, Senhor, me mostrais tão grande misericórdia? Ponde vossos benignos
olhos nos Sucessores, que me prometeis, e guardai salva a gente portuguesa’.
‘Não se apartará deles, nem de ti, nunca, minha misericórdia, porque por sua
via tenho aparelhadas grandes searas, e a eles escolhidos por meus segadores em
terras mui remotas’. Dito isto, desapareceu”.
Confortado
por essas palavras, D. Afonso volta para o acampamento. No brilho dos seus
olhos, e no vigor de sua expressão, seus cavaleiros encontram ânimo para dar
batalha aos infiéis.(7)
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