sábado, 27 de julho de 2013

“Concílio Vaticano II: um Debate que não aconteceu”

Concílio Vaticano II: um Debate que não aconteceu
por Monsenhor Brunero Gherardini.

Este livro é uma continuação do Concilio Ecumenico Vaticano II,
un discorso da fare, que surgiu em italiano em 2009, e desde então foi traduzido para o francês, inglês, alemão, português e espanhol. Nesta obra, Monsenhor Brunero Gherardini, cónego da arqui-basílica vaticana e director do periódico teológico internacional Divinitas, não pára de lamentar que o debate sobre o Concílio Vaticano II não tenha ocorrido, chegando até mesmo a mostrar o porque este seria mais indispensável do que nunca hoje em dia. E acima de tudo, ele indica como este debate poderia ser aberto, dando ao leitor os primeiros elementos de uma análise rigorosa, longe de injúrias estéreis e elogios cegos.
Com a autorização amigável das edições do Courrier de Rome, publicamos aqui de antemão alguns textos particularmente esclarecedores sobre o “espírito do Concílio” e sobre o seu “contra-espírito”. Monsenhor Gherardini mostra que não se trata apenas do pós-Concílio que é responsável pela crise actual na Igreja, mas o próprio Concílio, cujo espírito continha a semente de seu “contra espírito (gegen-Geist), que Bento XVI denuncia, atribuindo-o apenas ao pós-concílio.

O professor emérito da pontifícia Universidade de Latrão indica no que ele está próximo e no que ele se distancia da hermenêutica proposta por aquele que foi o então Cardeal Ratzinger, na sua Entrevista sobre Fé com Vittorio Messori (Fayard, 1985):

“Minhas duas publicações têm em comum com a hermenêutica de Ratzinger, e ressaltando uma rejeição do gegen-Geist (o contra-espírito do Concílio), ou seja, este julgamento absurdo do Vaticano II que deixou de levar em consideração mais de vinte séculos de história e impôs uma maneira de ver as coisas que é radicalmente diferente de toda a Tradição eclesiástica e de seu conteúdo integral”.

“Minhas duas obras não falam que este gegen-Geist apagou, ou tentou apagar, o verdadeiro ‘espírito’ do Concílio. Elas até mesmo fazem a pergunta paradoxal e provocante de se o autêntico ‘espírito’ do Concílio não está, depois de tudo, aliado ao “contra-espírito. (p. 24)
“Assim com relação a valores tradicionais, o ‘espírito do Concílio’ foi em si mesmo umgegen-Geist, antes que isso mesmo fosse difundido pelos respectivos comentadores. O ‘espírito do Concílio’ em geral colocou o Concílio em oposição mesmo com tudo o que a Igreja até então tinha acreditado como o seu pão diário, especialmente, os Concílios de Trento e Vaticano I.
Não podemos deixar de ficar impactados pela presença de várias frases, espalhadas aqui e acolá em determinados documentos, especialmente, nos parágrafos estratégicos da inovação introduzida, com o simples objectivo de garantir entre ontem e hoje uma correspondência que de facto não existe.” (p. 30)
“Não devemos imaginar que houve uma reviravolta. O Concílio Vaticano II não inovou no que tange a todas as verdades contidas no Credo e definidas pelos Concílios precedentes. O problema não está na quantidade, mas na qualidade. Não é por nada que falamos do ‘espírito’ e do ‘contra espírito’ dentro do Concílio”.
“A ruptura, antes de recair sobre determinada questões, recaiu sobre a inspiração fundamental. Um certo ostracismo havia sido decretado, mas não em direcção a uma ou outra das verdades reveladas propostas como tal pela Igreja. Este novo ostracismo atacou uma certa maneira de apresentar essas verdades. Assim ele atacou um método teológico, o escolasticismo, que não é mais tolerado. Com a energia particular contra o Tomismo, considerado por muitos como ultrapassado e actualmente muito distante da sensibilidade e problemas do homem moderno”.
 “Não se percebeu, nem se quis acreditar, que a rejeição de Santo Tomás de Aquino e o seu método implicaria um colapso doutrinal. O ostracismo havia começado por se fazer subtil, penetrante e envolvente. Ele não jogou ninguém ou qualquer teoria teológica porta à fora, e muito menos certos dogmas. O que ele evidenciou foi a mentalidade que no seu tempo havia definido e promulgado esses dogmas”.
 “Assim ele foi uma verdadeira ruptura porque ela foi fortemente desejada, como uma condição necessária, como a única maneira que permitiria uma resposta a esperanças e indagações que até então – desde o iluminismo, ou seja – haviam permanecido sem resposta”.

“Perguntei-me se verdadeiramente todos os Padres conciliares perceberam que eles estavam objectivamente no processo de se afastarem desta mentalidade multi-secular que até então havia expresso a motivação fundamental de vida, de oração, do ensino e governo da Igreja”.

“No todo, eles propunham novamente a mentalidade modernista, aquela contra a qual São Pio X havia tomado uma posição muito clara, expressando a sua intenção de ‘instaurare omnia in Christo’, restaurando todas as coisas em Cristo’ (Efe 1:10). Assim esta foi claramente uma manifestação do gegen-Geist.” (p. 31-32)
 “A mesma coisa, é difícil ignorar que tudo começou precisamente com o Concílio Vaticano II. Alguém observou que o Concílio Vaticano II poderia ser comparado ao Aeolus’ goatskin (que na lenda grega detém todos os ventos contrários). É desde o Vaticano II que este furacão a que chamamos de “o espírito do Concílio” foi deixado solto, um espírito no qual reconheci sem problema a presença de ‘contra’”.
“Sim, ‘contra’:
- contra a espiritualidade que guiou a Igreja de sua origem até 1963;
- contra os seus dogmas, reinterpretados não teologicamente, mas de uma maneira historicista;
- contra a sua Tradição, suprimida como uma fonte de Revelação e reinterpretada como a aceitação daquilo que alguém encontra no seu caminho, acima de tudo no pluralismo cultural moderno, seja ele homogêneo ou não em relação ao seu status ontológico”.
“Se somente desejamos culpar o pós-Concílio, então que seja, porque ele não é de jeito algum todo livre de erros. Mas também, não devemos nos esquecer que ele é o filho natural do Concílio, e que ele está inserido no Concílio, que nele achou os princípios nos quais então encontrou os seus conteúdos mais devastadores, ao ponto de esgotá-los”.
“Entretanto, devemos dizer algumas palavras com relação a um aspecto do aggiornamento conciliar. Isso é particularmente importante para mim, porque é uma parte da tradição Tridentina e porque está em conformidade com a realidade sacramental do sacerdote. É dele que desejo falar agora”.
“Tanto na Lumen gentium 28/1, que diz textualmente: “Os sacerdotes [...] são consagrados para pregar o Evangelho,” quanto na Presbyterorum Ordinis 13/2, que voluntariamente coloca o ministério da Palavra no mais alto lugar nas funções do sacerdote, vemos uma modificação clara da tradição Tridentina, de acordo com a qual o sacerdote é ‘ad conficiendam eucharistiam.’ Evidentemente, ele está destinado a outras finalidades, mas tudo está colocado depois do sacrifício Eucarístico”.
“Porém, nos textos do Vaticano II, tudo o que não está em relação ao ministério da Palavra se torna secundário, esquecendo-se da condição do sacerdote como uma continuação mística de Cristo e, assim, a base crística do sacrificante e glorificador do Pai, que se reflecte nos sacerdotes e forma a sua primeira característica”.
“Consequentemente, como pode ser coerente declarar que tal reviravolta radical da tradição Tridentina também é perfeitamente coerente com o magistério precedente, e constitui o material de validade infalível, irreformável e dogmática? Admito candidamente que não compreendo.” (p. 82-83)
Então, Monsenhor Gherardini oferece ao teólogo que aceitaria “abrir o debate” um método de trabalho, e ele o convida a começar com a distinção dos quatro níveis nos documentos conciliares:
“Parece-me que para começar, e sempre depois de ter considerado todas as implicações, um bom crítico deveria considerar o Concílio Vaticano II nos quatro níveis distintos:
a)O nível genérico do concílio ecuménico como um concílio ecuménico;
b)O nível específico como pastoral;
c)O nível de referência a outros concílios;
d)O nível de inovações.” (p. 84)
“O Concílio Vaticano (…) apresenta um quarto nível, o de suas inovações. Se não olharmos para cada ensinamento, mas para o espírito que os concebeu e produziu todos, poderíamos sustentar que o Concílio foi inteiramente no nível “quarto”, ou que todos podem ser encontrados neste nível. O ‘contra’, de que falei nesse lugar, posiciona o Concílio Vaticano II, quer gostemos ou não dele, no nível de inovação; e mesmo de uma inovação singular, a mais radical, que, antes de olhar para as coisas, tomou um “Garibaldi”, ou seja, uma fascinação revolucionária; e digamos que antes de chegar concretamente a rupturas surpreendentes e manifestas, o ‘contra’ foi um “não em voz alta e decidida à inspiração fundamental do magistério anterior. As inovações que foram decididas sucessivamente foram a consequência lógica”.
“Um leitor que não necessariamente seria um especialista, mas que teria algumas noções histórico-teológicas, será capaz de distinguir entre elas sem problema. Tomemos um ponto de vista formal, o novo conceito de ‘constitutio‘: é nesse novo ponto de que ele engendrou cópias de constituições nas quais o modo constitutivo desapareceu atrás de uma linguagem imprópria e vaga, voluntariamente privada de intenções definitórias, e frequentemente substituída por linguagem profana; e isso, a convite do Papa Roncalli, repetidas em seguida por seus sucessores. O que é mais, este conceito abriu as portas dos elementos “constitutivos” mesmo para elementos estrangeiros. Precisamos ler Gaudium et Spes atentamente e sem ideias pré-concebidas: alguém poderá perguntar, em suma, que elo poderá existir entre a grande maioria de temas tratados, não somente na segunda parte, mas também na primeira parte deste texto, com a natureza e a actividade apostólica específica da Igreja.
A novidade coloca a Igreja no nível dos Estados e suas instituições; ela torna a Igreja uma parte interveniente dentre outras, e a despe não tanto da sua função como crítica conscienciosa da história, mas sim de sua natureza de ‘sacramentum Christi‘ e da responsabilidade que segue disso com relação à salvação eterna.
A Igreja assim se torna uma entidade, em diálogo com outras entidades. A Igreja promove diálogo para realizar fins que indubitavelmente são sublimes – progresso, paz – que a afasta de sua tarefa específica que é a de pregar o Evangelho, tornar real e aplicar os méritos da Redenção, e propagar o reino de Deus: em tudo, tudo que tem a ver com a vida da graça até o momento da Parusia” (p. 87-88)
Monsenhor Brunero Gherardini, Vatican Council II: a Debate That Has Not Taken Place,Ed. Courrier de Rome, 112p. A tradução francesa pode ser encomendada no início de outubro da Courrier de Rome – B.P.156 – F – 78001 Versailles ou através do e-mailcourrierderome@wanadoo.fr